sexta-feira, abril 21, 2006

Peregrinação a Santiago


Génese

No comboio de volta a Lisboa. Uma rapariga entra na carruagem com uma enorme mochila de campismo, mais uma mala de apoio e uma vara maior que ela. Uma imagem um tanto quanto desconcertante numa estação de Coimbra, no entanto, bastante enquadrada na lendária cidade galega, Santiago de Compostela.
Há já muito tempo que ouvira relatos de jornadas feitas pelos mais variados caminhos. O fulgor e a admiração por dias de aventura aliciaram-me finalmente.
E foi nas férias da Páscoa do ano 2006, que aceitei o desafio de atravessar vales, subir montes, prescrutar na penumbra da intensa vegetação, prescindir da morta rotina em virtude de um dinamismo enriquecedor.

Início

As primeiras setas amarelas foram seguidas em Valença. A mochila, que não puderia ultrapassar os 6kg, levava o mínimo, desde panos vileda em substituição do peso normal de uma toalha.
A caminhada foi feita em 5 dias como fora previsto. Irei tentar resumir, de forma fidedigna, tudo o que vi, apesar de ser humanamente impossivel transcrever o espanto, o momento da contemplação hipnótica, a inspiração do desconhecido, a magia imperiosa dos monumentos, a arte rebuscada dos edifícios, a austeridade vibrante das cerimónias.
Mediante o facto que se caminha 4km/h, as etapas diárias circundavam os 25kms. Muito puxado para alguns, bastante leve para outros, o que é facto é que todos caíam nos beliches dos albergues como pedras. No entanto, a meu pedido e graças à compreensão da parte dos meus companheiros, já conhecedores dos trajectos, optaram por um caminho não muito difícil, usualmente conhecido por Caminho Português (existem vários, como o Caminho Inglês, Francês, etc). E confesso que, apesar desse aparente facilitismo, ainda tive de engolir uns sapos. Um deles foi a caminhar em alcatrão. Deveras desconfortável.
Éramos um grupo de 5 elementos das mais variadas idades, logo, cada um com o seu ritmo na passada.

Meio circundante

Durante grande parte dos dias, raro era o momento em que não se ouvia água a correr. Pequenas cascatazinhas brotavam por entre as rochas no meio da verdejante vegetação, riachos que corriam suavemente. Uns tão largos que tinhamos de passar por umas pequenas pontes improvisadas por uns antigos peregrinos talvez. Claro que, depois de horas seguidas apeados, a vontade é nunca a de passar por cima da água, mas sim chapinhar, pois só o som nos refresca.
Eucaliptos rangiam timidamente com a aragem que passava. O cheiro a campo trouxera-me recordações de uma outra vida de infância. Os corvos e as gaivotas eram os animais de companhia, sem contar com um número incontável de cães que não deixaram de anunciar a nossa passagem à frente dos seus portões.

População

Cumprimentávamos toda a gente com um “bom dia”, ao qual retribuiam com um sorriso e um desejo de boa viagem. Carros que passavam e nos apitavam, acenando da janela como forma de encorajamento.
É impressionante como os galegos têm a pronúncia tão parecida com a dos transmontanos. Eu, com esta minha estadia acidentada em Lisboa, praticamente me sentira em casa. Cheguei à conclusão de que os galegos são mais portugueses que muitos dos nossos. Não há nada a fazer.

Pormenor

Um pormenor que achei intrigante, mesmo a roçar no exagero, foi o facto de 95% das casas pelas quais passei, tinham um espigueiro. Ora bem, isto à partida não suscita problema, até vos dizer que uns constroem propositadamente, e já com materiais recentes, para decoração dos jardins. Acreditem que a fontezinha e os leões já são inconcebíveis, mas os espigueiros... E havia de todos os tamanhos e feitios, não eram daqueles de granito esverdeado pela humidade, com a madeira e estalar de velha e enegrecida pelo tempo. Isso sim é lindo de vêr. Sentir o antigo, reconhecer as raízes de que somos feitos, e renegar ao látex.

1ª Etapa

A etapa que menos gostei foi, sem dúvida, a primeira. Tivémos que atravessar a zona industrial da zona (Porriño) onde, curiosamente, encontrei um armazém monstro, com umas letras igualmente grandes que me pareceram familiares. Contudo, não consegui perceber do que se tratava. Aí, apanhámos uma recta de 3kms. Fizémo-la em pouco mais de uma hora, o que de carro puderia ser feito em um minuto.
E eis a parte que se torna frustrante: à vinda para Portugal, de carro, as distâncias parecem muuuuito mais curtas. Imaginem, povo transmontano, irem a pé de Mirandela ao Porto. Peis... e relembro que estamos a falar do caminho mais simples para Santiago.
O ponto positivo foi o improviso. Ora resfescávamos os pés no repuxo de uma praceta da cidade, ora faziamos a sesta num parque mesmo em frente ao restaurante onde tinhamos almoçado. Nunca pensei que fosse tão confortável dormir em bancos de jardim.

Refeições

Nessa semana, as nossas refeições eram à base de tapas (presunto, queijo, polvo, calamares), “enpanadas” e batatas-fritas. Mas comia-se extremamente bem. E o atendimento também não ficou a desejar (ora, mais duas semelhenças com o povo do Norte). Houve uma simpática senhora que, pelo nosso arrastado espanhol, julgou que fossemos argentinos.
Fui proibida de beber cerveja com o argumento (inválido) de que o vinho é a bebida predominantemente rural e que me teria de cingir ao contexto. Enfim...

Albergues

Os albergues são todos diferentes uns dos outros, construções recentes, prédios aproveitados, casas antigas restauradas, ora no ermo, ora na zona antiga de uma cidade. Estes auxiliam os peregrinos, onde os mesmos podem pernoitar gratuitamente uma única noite, para depois prosseguirem com a caminhada no dia seguinte.
Por vezes, criam-se complicações quando o número de peregrinos excede o número de camas disponíveis. Nestas situações arranjam-se colchões ou algo confortável para se dormir no chão, chegando-se mesmo a ocupar corredores. E isto é quando está tudo sereno, pois quando os ânimos se exaltam, arma-se o caos por causa da cedência de lugares (por esta ordem: apeadeiros, de bicicleta, a cavalo, com carro de apoio). Alguns marcam lugar mesmo antes de chegar, sem saber que é por ordem de chegada. Bem, indignação total.
A melhor parte foi mesmo, igualmente na primeira etapa, apanharmos um albergue só para nós. Só tivémos dificuldade na escolha do beliche e em que andar é que íamos dormir.

Outros peregrinos

Relativamente aos outros peregrinos, havia um grupo de escuteiros do Porto, um grupo de Braga, um casal de alemães, um punhado de brasileiros, um trio madrilenho (com quem nos démos mais) e o resto portugueses. Juntaram-se-nos, também, um grupo de cerca de 14 jovens estigmatizados enquanto coimbrinhas, mas formalmente baptizados, por um coordenador, por “Cerelac”. O que por si só é lisonjeante. Resumindo os episódios: fizeram de um albergue um acampamento de Verão, faltando só mesmo a viola. Uma coisa maravilhosa, a puberdade!

Santiago de Compostela

E, enfim, Santiago de Compostela!
Quando se avistaram as torres da catedral na linha do horizonte, foi um alívio para mim e para os demais. Lá demos os últimos kms com custo e, com o júbilo da chegada, as dores musculares mal se sentiam.
Fiquei encantada com o “casco viejo” (zona antiga da cidade)! Creio que as fotos, de baixa resolução, falam por si. Tenho pena que estas não consigam transmitir a magnificência e a imponência de cada pedra erguida. O gótico e o barroco em comunhão, oferecem aos visitantes algo nunca antes visto. Desde praças imensamente largas, a fontes extremamente trabalhadas, a altares de talha dourada, dos quais se torna difícil desviar o olhar, as abóbadas, as naves da catedral, as imensas escadarias, as lojinhas de souvenirs, as tascas escondidas.
Aconselho-vos vivamente uma visita (se fizerem o caminho tanto melhor). Eu já saí de lá com o bichinho e já estou a projectar uma outra dose. Quem sabe, com amigos.Posto isto, apenas digo: É digno de ser repetido!!


Caminho percorrido

3 Comments:

Blogger Sophie said...

Xiii... q engraçado... sabes que, em príncipio, em Setembro, vou fazer essa caminhada a Santiago?!! ;)
Começei a ler o teu post e nem queria acreditar... era exactamente o que eu precisava de ler... acredito que se trata de um desafio tanto físico como psicológico mas estou mesmo decidida... Se não houver nada contra vou lá para Setembro. Mas até gostava de saber mais pormenores como preparativos e a parte burocrática que não sei se existe mas provavelmente a resposta será afirmativa (ou não estivessemos neste cantinho q apesar de muitas vezes esquecido, liga o complicómetro por td e por nada)...

Soubeste muito bem relançar-me no desejo do desafio... e, já agora, um bom merecido descanso!!!:)

Bjinhos!!

sexta abr. 21, 10:02:00 da tarde  
Blogger Koala said...

eu por acaso ja pensei em repetir em setembro. mas o unico problema é que, parecendo que não, gasta-se bastante dinheiro, só em refeiçoes (sem contar com as lembranças que uma pessoa gosta sempre de levar para casa).
Em relação a papelada, é fundamental arranjares a credencial. A mim disseram-m que era só em Braga, que é onde está sediada uma associação especializada no ramo (não me recordo do nome). É a credencial que te abre as portas do albergue, por isso é essencial.
koala_in_surf@hotmail.com tens aki o meu mail caso keiras k te mande a lista das coisas necessárias p o caminho, queiras saber mais pormenores. etc!
*****

sexta abr. 21, 11:01:00 da tarde  
Blogger Unknown said...

Parabêns pela vontade e esforço e fé para uma peregrinação tão "cansativa"
A fé do homem leva-nos ao infinito...

quarta abr. 26, 08:51:00 da manhã  

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